sábado, 4 de abril de 2015

Onde foi que as editoras brasileiras de quadrinhos erraram?

Não é de hoje que as editoras de revistas no nosso país enfrentam vários problemas, de ordem econômica e até logística, desde o custo de produção e distribuição até a considerável queda nas vendas, principalmente após o advento e "democratização" do acesso à Internet.

E se essa realidade desagradável já se faz presente junto a revistas de grande porte, tradicionais, imagine a situação das revistas em quadrinhos...


Mas, embora comovente, essa não é a proposta deste tópico.
Vamos falar sobre HQs e sobre onde as editoras brasileiras pisaram na bola na hora de publicar esses quadrinhos aqui.

Apesar das dificuldades acima citadas para manter a publicação de uma revista, o leitor há de convir que a qualidade de publicação nem sempre corresponde aos valores cobrados. E veja bem, não estou mais falando sobre a influência do aumento de tributos ou da inflação no preço final do produto. Estou falando de tomada de decisão, de trabalho editorial mesmo.


Parece covardia, mas estive comparando algumas HQs importadas com o material nacional correspondente, principalmente aqueles que saíram por aqui entre os anos 1980 e 1990 e a primeira impressão que tive foi de ter sido enganado por anos pelo trabalho editorial nacional, a começar pelos malditos formatinhos em que essas revistas eram publicadas aqui, que, além de representar menor custo com impressão para as editoras, implicava também na perda de qualidade dos desenhos e do material como um todo para o leitor. E pensar que eu comprava aqueles gibizinhos com tanta empolgação, como se fosse um primor de qualidade...

Que fique claro, desde logo, que esta postagem não tem o condão de denegrir o trabalho das editoras aqui mencionadas, muito menos desestimular ou atrapalhar a continuidade de suas publicações, mas tão somente apontar algumas decisões tomadas em determinados aspectos que acabaram por prejudicar o resultado final de muito material que foi publicado por aqui. Pois é inegável que, mesmo com os erros, a publicação do material de baixa qualidade foi fundamental para popularizar a cultura de quadrinhos no Brasil. Ninguém imaginava, naquela época, comprar uma versão encadernada com acabamento de luxo e papel couché de seu personagem favorito e em tamanho original "americano". A gente só queria mesmo era ler um gibizinho legal e depois largar num canto ou emprestar para um amigo. E ao que parece, essa mentalidade se refletia nas decisões editoriais. Afinal, as editoras uniam o útil ao agradável, publicando materiais variados para um público menos exigente e a baixo custo (guardadas as devidas proporções, já que o país enfrentava crise após crise na âmbito financeiro, com alta inflacionária semanal, quando pouco).


Pois bem, no Brasil, os quadrinhos de super-heróis foram publicados ao longo de décadas por várias editoras distintas, a exemplo da editora Abril, Ebal, RGE, GEP, Bloch e, atualmente, Panini entre outras menores, que publicam materiais menos mainstream, como a editora HQM (que recentemente anunciou a cessação da publicação de revistas mensais da linha Valiant, justamente por conta dos problemas apontados no início desta postagem - de ordem econômica, portanto).

Algumas editoras por onde passou o Homem-Aranha


É natural que com o passar do tempo, o advento da Internet e o acesso a melhores tecnologias, o trabalho editorial fosse progressivamente melhorando. Desse modo, a maioria dos problemas de ordem editorial constatados por mim e apontados no decorrer desta postagem serão menos comuns com a editora Panini, atual detentora dos direitos de publicação da linha Marvel e DC.



JOGO DOS SETE ERROS

Quando comparamos alguns quadrinhos gringos com suas versões brasileiras, percebemos vários cortes, desde simples caixas de diálogos até páginas inteiras que deixaram de ser publicadas.
Outros problemas comuns são o salto de numeração (supressão de edições, que não chegaram a ser publicadas) e até a descontinuidade da publicação de alguns materiais (que começaram mas não tiveram fim).

No quesito tradução, existem casos absurdos que extrapolam a liberdade de adaptação, configurando verdadeiras alterações da obra original em relação ao texto. Pra se ter uma ideia, se esses quadrinhos fossem a Bíblia, tais traduções seriam verdadeiras heresias.

O mesmo acontecia na arte, quando as histórias eram recoloridas aqui com tons totalmente distintos do original ou mesmo quando alguns desenhos eram apagados, literalmente.
Isso sem falar no próprio "formatinho" em que os gibis eram publicados no nosso país, que apesar de custar mais barato para os leitores e para as editoras, perdiam consideravelmente a qualidade da arte original (mas quanto aos formatinhos, vou me abster de tecer mais comentários).

Seguem abaixo alguns dos problemas constatados em mais detalhes!


SALTO DE NUMERAÇÃO

Prática bem comum durante a fase comandada pela editora Abril e suas antecessoras.
As edições que as editoras julgavam desinteressantes eram simplesmente esquecidas.
Mas não se engane! A Panini também já fez isso em algumas ocasiões, a exemplo do Demolidor escrito e desenhado por David Mack, no relativamente recente arco Echo: Vision Quest, cujas edições #51 a 55 da mensal de Daredevil que compunham o arco nunca deram as caras por aqui.

Capas de Daredevil #51 a 55, que não foram publicadas pela Panini.


Página 1, de Daredevil #51, por David Mack
Vale frisar que essas edições foram publicadas durante a aclamada fase do escritor Brian Michael Bendis, enquanto este tirava uma folga dos roteiros do Demolidor, dando ao talentosíssimo David Mack a chance de aprofundar mais a interessante personagem criada por ele, Maya Lopez, chamada de Eco, que já havia se encontrado com o Homem sem Medo anteriormente. A obra se destaca pela forma que é contada, com belíssimas artes pintadas, que lembram muito algumas histórias de Sandman. David Mack desenha e escreve.
Ao lado, uma demonstração da fantástica arte de Mack.


Um outro caso clássico de supressão de numeração aconteceu na cronologia dos X-Men durante a fase publicada pela editora Abril, ao final dos anos 1990, quando Bishop se separa dos demais pupilos do Prof. Xavier no espaço, tendo seu paradeiro revelado meses depois, em Uncanny X-Men #358. Acontece que no Brasil, a mencionada editora preferiu não publicar a edição, deixando uma incógnita nos leitores daquela época acerca do mutante perdido. O caso surpreende, já que os mutantes sempre foram personagens de primeiro escalão da Marvel desde os anos 1970 e dificilmente tem alguma edição suprimida mesmo aqui no Brasil, pois vendem bem aqui também.



Além disso, a editora Abril deixou de publicar a edição supracitada para publicar algumas histórias "B" insignificantes do tipo "O que aconteceria se..." envolvendo o Gambit, em situações hipotéticas como "E se os X-Men tivessem matado Gambit?". Ao que parece, isso diz respeito a questões contratuais... a Abril, assim como a Panini, compram um "pacote" de títulos para serem publicados e, de quebra, ganham historinhas meia-boca pra tapar buraco e não vêem outra saída senão publicar, afinal aquilo custou grana. Mas o que eu não entendo é o porquê de alguns títulos "A" não terem sido comprados. Vai saber...


Fabulosos X-Men da editora Abril:
 Prioridade às histórias B. Dinheiro jogado fora!


CORTE DE DIÁLOGOS

Como caso de supressão de diálogos, vício bastante comum na Era Abril, podemos citar vários, dentre eles, uma cena que trata de uma conversa entre Peter Rasputin, o Colossus, dos X-Men, e sua irmã:




















Outro exemplo de supressão de balões de diálogo bem mais evidente segue abaixo, no qual o corte de balões acabou por reduzir a dramaticidade da cena:


ALTERAÇÃO DO TEXTO E DA OBRA ORIGINAL

As traduções em algumas vezes destoavam do sentido original, deixando de configurar uma adaptação para caracterizar uma verdadeira alteração na obra. É como se o tradutor nem mesmo tivesse lido o texto original e inventasse qualquer coisa para preencher os balões. No fim das contas, o leitor já não estava lendo o texto do escritor original, mas sim o texto inventado pelo tradutor, que deturpava a obra segundo os interesses da editora.

Para exemplificar, trago uma página de Uncanny X-Men #174, em que o Professor Xavier conversa com Lilandra sobre sua preocupação com Scott Summers e Madelyne Pryor, que acabaram de se conhecer após a trágica morte de Jean Grey e pouco tempo depois já estavam de casamento marcado.
Na versão da editora Abril, a preocupação de Xavier tem outro motivo: Logan e Ororo. Seguem as páginas abaixo como demonstração do trabalho editorial da época.

Uncanny X-Men #174: Scott, Madelyne e Jean são o tema da conversa.

Versão da editora Abril: Muitos cortes nos diálogos e Scott deixa de ser o ponto central da conversa.


CORTE DE PÁGINAS

Muitas vezes, mesmo quando era publicada uma determinada edição, alguma página corria o risco de não dar as caras na versão brasileira. Isso porque as revistas têm uma quantidade fixa de páginas, e se alguma história extrapolasse essa limitação, poderia não ser publicada na íntegra por aqui. Muitas vezes priorizava-se uma propaganda comercial em vez de publicar uma história na íntegra. E aqui a gente cai na velha conversa sobre situação econômica e blá blá blá... Afinal, era a propaganda que também mantinha a produção... Mas e a qualidade?! Onde fica?!
Abaixo seguem exemplos de páginas suprimidas de Excalibur #100 e X-Men #64, da saga Operação Tolerância Zero. Aliás, se você tiver lido a saga na época que saiu aqui, vai lembrar que Bastion raptou Jubileu mas não vai lembrar como. Simples: a editora não publicou. E foi além: todas as cenas seguintes que mostravam Bastion conversando com Jubileu nas demais edições, foram simplesmente cortadas das publicações. Verdadeira Tolerância Zero, mas da editora em relação à Jubileu.


Páginas nunca impressas no Brasil


CORES ALTERADAS

A colorização muitas vezes eram feitas aqui mesmo no Brasil (penso que, inicialmente, o material nos era remetido em preto e branco), o que gerava também alteração na obra original, pois muitos personagens tiveram os uniformes pintados de cores diferentes dos quais foram concebidos originalmente. É possível notar também um excesso do recurso "blur" nas imagens, deixando-as borradas, condenando a arte dos desenhistas da época. Além disso, o sofrível "formatinho" em que eram impressas as HQs não contribuía em nada para a qualidade da arte.



Fato curioso é que os coloristas brasileiros tinham apenas o primeiro nome atribuído ao trabalho nos créditos das revistas, tal era a importância da função.
Hoje em dia isso não é mais problema, pois os arquivos são distribuídos digitalmente, ficando mais fácil fazer a  edição sem perder a fidelidade com o material original. E mesmo que seja preciso fazer uma modificação ou duas, o Photoshop está aí pra fazer os 12 trabalhos de Hércules, não é mesmo?!


SUPRESSÃO DE PERSONAGENS INDESEJADOS

Imagina só uma conversa entre um colorista e o editor:
- Que tal a gente apagar alguns personagens da capa dessa revista? Além de serem pouco conhecidos do público, vai dar mais trabalho pra colorir!
- Tudo bem!
-Ah, e eu posso pintar a Mulher-Hulk de azul? É que acabou a tinta verde...!

A imagem abaixo traduz bem isso, E não se engane, isso não ocorreu apenas na capa.


Capa original à esquerda e versão brasileira à direita. Sentiu falta de alguém?

Quer um conselho? jogue as edições de Guerras Secretas da Abril fora e compre a edição da Panini ou as duas partes em capa dura da Salvat. Obrigado, de nada!


DESCONTINUIDADE DE ALGUMAS SÉRIES

Algumas séries simplesmente foram esquecidas pelas editoras e deixaram de ser publicadas por aqui, a exemplo dos títulos mutantes Generation X, Mutant X, Maverick, e até recentemente, X-Factor, Astonishing X-Men, etc, o que é frustrante para quem acompanha uma história e quer saber o fim que ela vai dar.

Alguns títulos mutantes descontinuados no Brasil

Vale frisar que a série X-Factor, que recentemente foi descontinuada e sem previsão de retorno, foi escrita por Peter David e bastante elogiada pela crítica especializada, mas... fazer o quê?!
Se você fala inglês, leia as originais ou procure uma versão traduzida por fãs sem muitos erros grotescos de gramática. Boa sorte!


CONCLUSÃO

Enfim, acredito que tudo isso acontecia nem tanto por desconsideração à nona arte - já que existiam profissionais trabalhando nisso, dedicando suas vidas a isso - mas sim por conta de muita pressão editorial, já que aqui no Brasil, tradicionalmente, é sempre uma mesma editora que publica os quadrinhos dos principais heróis do mercado no decorrer das décadas. Em outras palavras, o monopólio na publicação de muito material acaba gerando maiores cobranças e menor tempo para entregar um material de qualidade. E é claro, os fatores econômicos também afetam de uma forma ou de outra a qualidade da publicação. Mas alguns pontos citados são isentos desses fatores, como a tradução apressada!
Procurei não focar as comparações com as edições da Ebal, Bloch e as demais pra não parecer um cafajeste, já que naquela época era tudo muito mais difícil. E essas editoras e algumas outras praticamente trouxeram os quadrinhos pro Brasil quando a venda de gibis de super-heróis ainda "engatinhava" nos Estados Unidos.

Se você se deu ao trabalho de ler até aqui, obrigado e até mais!
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